Um clique. Um pequeno facho de luz. Um portão que se abre, minimamente, de forma quase imperceptível, o suficiente para passar um envelope. Um novo clique. E o portão se fecha. Essa história, vou deixar para contar no final…

“Nada será como antes”. “Um novo mundo surgirá”. “As pessoas serão muito melhores”.

Tantas e tantas frases que se lêem, que se ouvem, depois que uma das maiores tragédias da história mundial começou. Frases fortes, porém vazias, ditas e escritas mais como um manifesto de esperança do que como uma imagem do novo futuro que se projeta para o novo mundo pós-pandemia.

Como muitos sabem, sou nascido, criado e moro em Belo Horizonte, Minas Gerais. Eu poderia dizer somente BH, e todos saberiam onde é. Fiz questão de colocar por extenso para poder dizer, com um certo orgulho contido que, tanto BH quanto Minas são duas das regiões, geograficamente definidas, com menos casos de pessoas falecidas pelo coronavírus do Brasil.

Orgulho, por saber que, de uma forma ou de outra, as ações públicas, associadas ao comprometimento da sociedade civil, têm reduzido muito os efeitos desse terrível vírus que assola o mundo todo.

Contido, por saber que, ainda que tenhamos poucas mortes, elas existem. E cada vida que se perde, cada história que se interrompe, é motivo de dor, para todos, não somente para os familiares e entes queridos dos que partem, mas para todo ser humano que conhece a dor da ausência de quem se ama.

E como eu conheço!

Chega de falar de orgulho, nesse momento.

Preciso desabafar com vocês sobre a vergonha e indignação que senti ontem, quando recebi imagens em vídeo (e depois em fotos), de cenas que aconteceram muito perto de mim, na verdade, em uma região que eu sempre acreditei se situar dentro de BH.

Para quem conhece bem nossa linda cidade, sabe que somos vizinhos de uma cidade, bem menor, chamada Nova Lima. Um pequeno paraíso, cercado de montanhas, que produzem lindas paisagens, que fazem todo amante do que é belo se apaixonar.

Há pontos em que as cidades praticamente se tocam. Devido à proximidade, diversos condomínios e bairros foram construídos, tendo sido comercialmente direcionados para muitas famílias ricas e abastadas de Belo Horizonte, concentrando, assim, uma região que reúne exuberância e luxo, em um dos metros quadrados mais valorizados da região.

Existe, entretanto, uma outra Nova Lima, bem menos glamourosa, bem menos rica, sob o aspecto econômico. Mas não é isso que importa agora.

Como disse anteriormente, há pontos, entre BH e Nova Lima, em que não é possível saber, exatamente, onde se está, visto que, do ponto de vista formal, os municípios se tocam.

Os requintados bares e restaurantes dessa região sempre foram muito badalados, diante da proximidade dessa região rica. São frequentados, na maioria dos casos, por cidadãos de Belo Horizonte, que moram nos abastados condomínios de Nova Lima, ou por belorizontinos que para lá se deslocam.

Devido aos “baixos” números oficiais de infectados pelo coronavírus da cidade, o prefeito de Nova Lima, Vitor Penido, resolveu flexibilizar a política de isolamento social. Tal decisão, completamente equivocada, em minha humilde opinião, criou uma situação tão inusitada quanto reprovável.

Na data de ontem, nessa região de interseção entre os dois municípios, mas do lado oficialmente considerado Nova Lima, bares e restaurantes ficaram lotados. Frequentadores sem máscaras e sem educação, aglomeravam-se nos disputados espaços. Entre eles, garçons assustados, ziguezagueavam entre as mesas, vestidos como em filmes de ficção (?).

Cenas bizarras e repulsivas, protagonizadas por seres egoístas, que se acreditam indestrutíveis, mas que não o são. Ao contrário, são somente potenciais transmissores de uma infecção mortal, que pode atingir não somente a seus entes queridos, mas a si mesmos.

Eu e minha família vamos completar dois meses de absoluto isolamento em nossa casa. Estamos sofrendo, confinados? Sim, claro. Gostaríamos de jantar fora, almoçar, ou simplesmente sentar em uma mesa e ver pessoas? Claro que sim. Mas o momento, em que o cheiro de morte infesta o ar, exige sacrifícios.

Temos milhares de clientes, micro, pequenos e médios empresários. Micro-empreendedores individuais, motoristas de aplicativos, enfim, toda uma parcela da sociedade, que precisa demais de casa, para poder manter empregos, empresas e, é claro, para muitos, apenas para não faltar o básico.

Eu respeito o dono de uma loja, do centro da cidade de BH, que arrisca sua vida para enfrentar a morte. Para poder ter o que comer, pagar suas contas, que não param de chegar. Mulheres e homens, escondendo-se por detrás de portas semicerradas, ora abertas, hora, fechadas, divididos entre o medo da contaminação iminente, e a fiscalização pesada que o prefeito Alexandre Kalil impôs a todos, em Belo Horizonte, contrapondo-se à política liberacionista da cidade vizinha.

Desprezo, todavia, aquelas pessoas dos bares de “Nova Lima”, dos vídeos de ontem que eu recebi. Se apenas um de vocês ler essas minhas palavras, saibam que não os respeito.

Ao contrário, tenho repulsa por todo aquele que ignora, por puro egoísmo, o que pode acontecer ao próximo, por estar centrado apenas em si mesmo.

Pessoas rindo alto, comemorando o quê? Pensei nas hienas. Seres que se alimentam de restos mortais, de lixo, de fezes. E que somente praticam sexo uma vez por ano, para fins de reprodução. O que me fez pensar: do que as hienas estão rindo.

Lembram-se da tal fresta do portão, que se abriu para a passagem do envelope, e se fechou, imediatamente?

Ontem, quase no mesmo horário em que as cenas acima ocorreram, quando pessoas irresponsáveis davam um bizarro show de falta de humanidade e de cidadania, minha esposa, voltando de sua clínica, passou rapidamente para pegar um envelope na casa onde minha mãe morou, nos derradeiros dias de sua vida.

Local eternizado pelo nome de “Casa da Mamãe”, onde ainda residem duas irmãs e minha madrinha, de 75 anos, é um de meus lugares preferidos. Um santuário de paz, de alegria e bom humor. Têm quase dois meses que não chego perto, por medo de poder complicar a saúde, principalmente de minha madrinha, minha segunda mãe.

A cena do portão abrindo e se fechando rapidamente aconteceu lá. Minha esposa me disse que queria muito ver o rosto delas, pessoas tão queridas. Mas não foi possível, pela fresta de portão que se abriu apenas o suficiente para poder passar o envelope.

Duas cenas, dois lugares distintos, duas formas de respeitara a vida e o semelhante. Se existem pessoas capazes de rir, com hienas, enquanto semelhantes morrem, igualmente existem pessoas boas, que se preocupam não somente com a própria saúde, mas com a de seus semelhantes.

Não sei, sinceramente, se o mundo vai melhorar, quando tudo isso começar a passar. Não dá para saber se os mantras “Nada será como antes”, “Um novo mundo surgirá” e “As pessoas serão muito melhores”, de fato, se concretizarão.

Pelo menos os dois primeiros, eu tenho certeza de que sim. Se as pessoas serão melhores, ainda é uma incógnita. Na verdade, penso que, quem é bom, ficará melhor e quem é ruim, pior. Mas, nessa estranha equação, eu realmente creio em muitas mudanças, sim. A dor, a angústia e a tristeza, velhos conhecidos meus, servem para lapidar as pessoas.

O sofrimento depura as pessoas. Alguns, o usam para se tornar pessoas melhores. Outros, para justificar suas deploráveis atitudes. Seja como for, sofrer leciona. Pois, aquele que passar pelas amarguras da vida e pelo sofrimento, e não aprender, sofreu em vão!

E por conta disso tudo, eu realmente, tenho muita fé em um MUNDO MELHOR!

De muita paz, muito aprendizado, muita saúde e de muita alegria, que ainda deve estar por vir. Ainda que, nesse momento, seja representada por um pequeno feixe de luz que vem de uma fresta no portão da “Casa da Mamãe”.

Que Deus nos abençoe, a todos. Mesmo àqueles que ainda não descobriram a beleza de se importar com outras pessoas, irmãos que somos.

André Mansur Brandão
Diretor-Presidente

ANDRÉ MANSUR ADVOGADOS ASSOCIADOS

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